quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Episteme Grega e a Ciência Moderna

Introdução

O presente trabalho, feito para a cadeira de História da Ciência e da Técnica, pretende fazer uma breve pontuação das diferenças entre a Episteme Grega e a Ciência Moderna, tomando, numa visão diacrônica, alguns conceitos de ciência.
Não há aqui, a pretensão de uma visão detalhada de ambos, até porque, geraria um compêndio de volume generoso, pois devemos nos lembrar que fazer esta comparação nos levaria a síntese de uma disciplina.
Estudar, mesmo que de forma seccionada um ramo ou assunto na ciência, requer uma minuciosa pesquisa, a leitura de pensadores da área e uma crítica muito bem fundamentada, pois, para que se faça de forma adequada. A própria História da Ciência e da Técnica, deve-se constituir como uma ciência, composta de método, quantificação, análise contextual e semântica, além de uma boa dose de pesquisa.
Portanto, procurarei ser mais generalista, dentro da proposta da prova que gerou este trabalho e não aprofundarei em detalhes, que, embora fascinantes, devem ser fruto de uma pesquisa mais focada.

A Episteme Grega

Ao cursar uma matéria de tópicos em História Antiga, deparei-me com um texto onde certo cidadão ateniense chamado Felipe admoestava seu filho “Não tens vergonha, diz ele, de tocar [cítara] tão bem?”[1], este diálogo ocorre num banquete entre comensais que acabavam de escutar o jovem executar uma peça. Distingui-se neste momento histórico o artesão e sua obra, sendo que o primeiro não era valorizado, enquanto a segunda apreciada, principalmente por um membro da aristocracia que “... dispõe de ócio e dá bastante às Musas, quando assiste como espectador a concursos onde se defrontam outros que não ele...”[2], tal postura revela uma faceta dos gregos da Atenas de aproximadamente Séc. III a.C., onde o trabalho não é digno de homens livres e sim de servos e metecos[3].O trabalho do artesão não é nada, mas seu produto pode e deve ser apreciado.
Obviamente, a noção de ciência dos gregos é baseada em seu contexto cultural, pois tomando por base as idéias de Thomas Kuhn, citadas pelo prof. Mauro Condé, a ciência é filha de seu contexto espaço temporal, sendo que não se pode falar em verdades científicas, mas visões da ciência. Tomando por base esta idéia, podemos deduzir que a ciência grega, é tipicamente de contemplar (qewri,a), pois o verdadeiro “trabalho” dos gregos é o de pensar. E pensando na essência das coisas (ontwj), sim esta era a busca daquele contexto.
Obviamente existia diferença de pensamento entre os atores deste recorte. Platão, por exemplo, acredita na essência das coisas num mundo das idéias, que se reflete no mundo material em seu modelo de platonismo. Isto poderia ser traduzido pelo mestre como sendo sua doutrina das idéias, onde os objetos do conhecimento se distinguem do mundo natural, sendo o segundo uma conseqüência dos primeiros. Contrária, neste ponto, é a idéia aristotélica, onde ele discursa sobre a essência das coisas, peça fundamental no seu entendimento, pois ela é “...algo sem o qual aquilo não pode ser o que é...”[4], ou seja, a essência é fundamental e a realidade em si. A reflexão aristotélica é baseada na observação direta, mas uma observação contemplativa e que normalmente gerava uma teoria do senso comum, sem um contato com o objeto de pesquisa ou com uma metodologia que o levasse a comprovar o fruto da contemplação. Podemos sintetizar a episteme grega como sendo a contemplação para atingir a essência das coisas, sem experimentos empíricos.
Uma das possíveis leituras da ruptura da episteme grega para a ciência moderna é uma que passa pela visão de mundo de Aristóteles neste momento. De acordo com a filosofia aristotélica de mundo,
“Um universo ordenado e hierarquizado segundo graus de perfeição: o perfeito (o mundo dos céus, o mundo supra-lunar) e o imperfeito (o mundo da Terra, o mundo sub-lunar). Mundos irremediavelmente separados por serem realidades distintas e opostas: suas regras de organização se oporiam tão radicalmente como o que é perfeito, incorruptível e imutável se opõe ao que é imperfeito, corruptível e mutável.”[5]
Esta visão perdura no ocidente, por ser compatível com um momento de “ciência” do “óbvio”, da observação simples, ou do senso comum. Aristóteles segue influenciando várias escolas ao longo do tempo, inclusive a dos Alexandrinos, que com algumas exceções, utilizam os conceitos deste para fundamentar suas teorias.
Vários séculos mais adiante, as idéias aristotélicas ganham novo impulso no ocidente medieval através de, principalmente, dois filósofos árabes. O primeiro deles foi Abu Ali al-Hussein ibn Abd-Allah ibn Sina, ou simplesmente Ibn Sina ou Avicena, que, no Séc. X escreveu várias obras sobre filosofia e medicina, baseando-se em Platão e Aristóteles. Formulou uma teoria de mundo claramente inspirada na filosofia aristotélica, composto por três partes, o mundo terrestre, o mundo celeste e Deus (primeiro motor), podendo-se fazer uma comparação com os mundos sub-lunar, supra-lunar e o primeiro motor aristotélico, embora haja diferenças nestas concepções. O segundo filósofo foi Abu al-Walid Muhammad Ibn Ahmad Ibn Munhammad Ibn Ruchd ou Averróis, que viveu no Séc. XI e escreveu algumas obras filosóficas e de cunho jurídico, porém com forte influência religiosa. Uma das suas mais célebres obras foi A Destruição da Destruição, onde defende idéias de um neoplatonismo, bem como as idéias de Aristóteles.
Abstraindo além da grande contribuição da obra de ambos pensadores, o que mais importa no contexto da presente análise é exatamente o fato deles “ressuscitarem” Aristóteles na Baixa Idade Média, de forma que seu pensamento fosse resgatado e reconsiderado como de grande importância para a então corrente dominante do pensamento ocidental: o cristianismo.
Através de São Tomás de Aquino, o Santo Filósofo da Idade Média, o aristotelismo volta como base de uma filosofia cristã, que encontra aí, um conjunto de idéias que podem ser ressignificadas em consonância com o pensamento vigente de então. O motor que a tudo move de Aristóteles recebe agora a similaridade do Deus cristão. Estava assim, consolidado o modelo aristotélico-tomista, que conferia a ambos pensadores legitimidade referencial.


A Ciência Moderna

A ruptura deste pensamento desenha-se de algumas maneiras dependendo dos pesquisadores. Para Robert Merton, por exemplo, a ruptura ocorre por volta do Séc. XVII, por causa de eventos e modificações sociais que têm duas origens interpretativas: Karl Marx e Max Weber. Para Merton, a explicação do nascimento de uma ciência moderna, passa pelas teorias marxistas da aplicação de uma pesquisa na melhoria dos meios de produção, necessários para um aumento da produtividade, por uma demanda gerada pela transformação na esfera econômica do contexto. A segunda tese dele passa pelo mesmo contexto, porém reforçada pelas idéias de Weber descritas no livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, onde o autor aponta para uma postura puritana frente às relações econômicas do nascimento do capitalismo moderno. Por esta visão, os atores, impulsionados por uma convicção de que a necessidade de uma justificativa de se cuidar bem dos negócios terrenos para edificar a obra do Senhor.
Outra interpretação é a de Paolo Rossi, para quem a ruptura se fez quando o homem começou a dar importância para a técnica, que começa a ocorrer por volta do Séc. XVI. Embora de acordo com sua tese, o mero interesse pela técnica não teria sido o único pretexto para a ruptura do pensamento científico, pois há a busca por um refinamento das técnicas devido a vários fatores, como, por exemplo, o desbravamento das navegações. Esta necessidade de conhecimento carece do interesse do saber formal, além disto, era preciso que o saber fosse sistematiza, além de embasado.
Para ele, um alquimista que busca uma fórmula mirabolante sem fundamentações ou uma prescrição rígida, com mensurações precisas, ou seja, carece de fundamentação teórica e de metodologia. Outro fator que entra muito forte é a capacidade de impacto social do saber científico, pois embora existissem mestres experimentadores neste contexto, faltava a aplicação dos aprendizados coletados na vida. A aversão herdada do classicismo helênico ao trabalho vai, aos poucos, se desfazendo neste contexto, exatamente pela importância e necessidade de inovações tecnológicas do período. É exatamente neste momento que se verifica a “... união entre as concepções científicas e a vida ativa...”[6] Paolo rossi, pág 32, possibilitando o uso social dos conhecimentos e da técnica na vida.
Dentro deste mesmo “caldo contextual”, mas como um capítulo à parte, vem apontado como um dos expoentes da ciência moderna, Galileu Galilei, que no Séc. VXII, através de um telescópio consegue fazer observações da Lua e o que ele observa na Lua é “...um relevo acidentado, com montanhas e vales, de forma semelhante à Terra...”[7], o que empiricamente ou através dos sentidos, destrói a idéia aristotélica do mundo Supra-Lunar, pois, segundo o grego, este mundo seria perfeito. Ao refutar através da observação a teoria aristotélica-tomista. Não é uma constatação de um simples equívoco, mas da refutação da sustentação de toda uma filosofia de época.
Galileu inaugura o método experimental. Este acrescido das práticas do método indutivo, em oposição ao método dedutivo de Aristóteles, passa a compor o rol das práticas de uma ciência moderna, que se difere da episteme grega em seu método; seu experimentalismo e possibilidade de reprodução, além do uso de uma linguagem comum, matemática, que fundamentam a linguagem universal da mesma. Além disto, a ciência moderna consegue uma certa “previsibilidade”, através da probabilística e da estatística, fundamentadas sempre em “receitas” seguras.

Conclusão

Em síntese a ruptura se fez quando a ciência se alia à técnica para o domínio da natureza, uma ciência que tem impacto social. Ela muda os pensamentos e hábitos, cria uma nova cultura, é quantificável, mensurável e pode ser reproduzida dentro de experimentos indutivos. Estes geram certa previsibilidade dos sistemas.

Bibliografia

Austin, Michel, e Pierre Vidal-Naquet. Economia e Sociedade na Grécia Antiga. Lisboa: Edições 70.
Condé, Mauro Lúcio Leitão. “De Galileu a Armstrong: as várias faces da lua.” CRONOS: Revista de História 42-56.
Moraes, Maria Célia M., e Paulo Rômulo Frota. CALCULANDO COM GALILEU: os desafios da ciência nova. 2000. http://coralx.ufsm.br/revce/ceesp/2000/02/a8.htm (acesso em 06 de 06 de 2008).
Rossi, Paolo. Os Filósofos e as Máquinas. Companhia das Letras.
Wikipédia. Google Inc. 2008. www.pt.wikipedia.org/wiki/Aristóteles (acesso em 2008 de 06 de 05).
Wikipédia. Wikipédia, a enciclopédia livre. 31 de 07 de 2003. http://pt.wikipedia.org/wiki/Avicena (acesso em 2008 de 06 de 04).
—. Wikipédia, a enciclopédia livre. 01 de 10 de 2004. http://pt.wikipedia.org/wiki/Averr%C3%B3is (acesso em 04 de 06 de 2008).


[1] (Austin e Vidal-Naquet s.d., 172)
[2] (Austin e Vidal-Naquet s.d., 172)
[3] Estrangeiros radicados em Atenas
[4] (Wikipédia 2008)
[5] (Moraes e Frota 2000)
[6] (Rossi s.d., 32)
[7] (Condé s.d., 44)

Autor: Alexandre de Oliveira

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