Calango é uma lagartixa grande, vive nas pedras. Por ser animal de sangue frio, precisa do calor do Sol, fica quarando horas e horas, só observando o mundo. Eu era um calango. Calma, eu explico...
Nasci em 1970, no bairro São Geraldo, zona leste de BH. Nesta década, era comum calçar as ruas ao invés de se asfaltar. Quando se localizava um veio de pedras de calçamento, logo a prefeitura fazia pedreira, tirava calçamento e cascalho. Numa distância de 300 metros da minha casa tinha uma destas, bum! Todos os dias, ao meio dia, eram vários estrondos de dinamite. Na mesma distância, porém no lado oposto, tinha a pracinha, local mais chique, cheio de casas e ruas asfaltadas. Tinha até casas de dois andares. Eu sonhava em morar numa destas, mas logo tinha que voltar para a pedreira, na rua de terra e um barracão de quatro cômodos, sala, dois quartos e cozinha. Mas, apesar de não morar naquelas casas bonitas, eu era feliz, acho que até mais que eles que moravam no asfalto, pois conseguia brincar de finca e fazer papoto para bolinha de gude e tico-tico fuzilado.
O apelido de calango quem nos deu foi o pessoal da pracinha, pois jogávamos bola contra eles e como nosso time não tinha nome, fomos batizados de Calango Futebol Clube, nome este escrito a mão nas camisas Hering brancas, pela irmã do Luiz Doido. Eles tinham chuteiras e nós a incrível habilidade de jogarmos de pés no chão. Sempre ganhávamos, tanto que alguns de nós normalmente éramos chamados para integrar o time deles quando era disputa entre bairros, nesta ocasião, eles nos emprestavam algumas chuteiras.
Tinha o funk, mas não era como este de hoje em dia. Era James Brown purinho e íamos dançar um Brown na quadra do Firmino. Era, na realidade um forninho, uma quadra fechada, com muita gente. Meu quase irmão, Rogerinho, era o dançarino da região, dançava tal e qual James Brown, a quem tivemos a oportunidade de ver um dia na TV lá de casa, eu e minha turma toda, pois minha casa foi uma das primeiras a ter TV na pedreira. Eu me lembro disto, tinha sete anos, TV preto e branca, mas meu pai comprou um daqueles plásticos multicoloridos que colocávamos na frente do vídeo e alardeávamos aos quatro cantos que tínhamos uma TV colorida, para ver O Homem de Seis Milhões de Dólares e Vila Sésamo. Ficávamos eu, Josequinha, Neném, Waguinho, Lelé, Paulinho, Cidinho e André.
Logo pela manhã o Rogerinho aparecia na porta lá de casa, chamando a mim e a meus três irmãos para vê-lo dançar. Ele pedia um copo de café com leite e um pão com manteiga em troca. Claro que pagávamos, pagamento pequeno pelo espetáculo. Eu não entendia muito bem porque ele não queria tomar café na casa dele com os onze irmãos. Cidinho paparia era do tipo conquistador, dede cedo paquerava todas as meninas da rua, mandava cartas e fazia juras de amor eterno. Beijando ou não as meninas, sempre contava para tudo mundo. Estranhamente elas gostavam disto.
Josequinha e André eram meus melhores amigos, destes que te colocam em todos os tipos de confusão. Lembro-me do dia que tínhamos comprado bombinhas, voltamos colocando latinhas de massa de tomate em cima dos pequenos explosivos acesos. De repente, subia a latinha a alturas astronômicas para nós. A alegria durou muito, até que uma destas latinhas caísse no telhado da casa de um policial, cuja esposa estava grávida. Que falta de paciência a dele, saiu correndo de casa, calças ainda um pouco arriadas, a nos perseguir. Imediatamente, André me deu um empurrão, eu caí na rua e os meus dois companheiros fugiram, dobraram a esquina e sumiram. Eu fiquei, o policial gesticulava e apontava o dedo para minha cara. Olhei para a esquina, fiz a alegria dos meus amigos, que não paravam de chorar de rir, solidários com meu medo.
Mas minha mãe era uma chata, ia cedinho trabalhar, deixando minha avó de plantão para logo me colocar para tomar banho e ir para a escola. Queria ficar com todos os meus amigos, brincando na rua, mas ela insistia. Para piorar, minha mãe ainda me colocou para estudar longe, numa tal escola chamada Barão de Macaúbas. Cheio de gente chata que ficava rindo do meu cabelo e da minha roupa, não sei por que, pois enquanto a deles era comprada nas Casas Rolla, a minha era feita a mão pela Dona Orelina, nossa vizinha. Além do mais, eles ficavam vermelhos no recreio e eu não, era uma grande vantagem.
Com o passar dos anos, fui descobrindo que estudar longe era uma coisa boa, dava para conhecer novos amigos, mas fui ficando longe dos amigos de infância. Quando estava na sexta série, tive um problema na escola, com a chata da professora de matemática, a vassourinha. Apelido dado pelo cabelo sempre desarrumado e da cor de piaçava. Tomei bomba, mas foi até bom, pois no outro ano estudei tanto que passei direto em tudo com uma média de 95 pontos. Resultado: fui para a única sétima série que tinha de manhã, a dos CDF. Éramos eu e um garoto cheio de espinhas e óculos de fundo de garrafas de homens na sala, o resto era mulher, para colocar em ebulição meus hormônios de adolescente.
Meu pedaço ficou estranho de repente: o Rogerinho morreu. Não sabia que morríamos jovens. Ele estava num fliperama, foi morto a tiros, ele e um menino de doze anos. Dizem que foi por causa de droga. Logo depois morreu Neném, nunca souberam quem o matou e nem por quê. Morreu com um cabo de vassoura enfiado e com dois tiros, diziam na rua que era polícia, claro que não acreditei, a Rotam está aí para nos proteger. Um ano depois morreu Paulinho, acidente de moto, era louco também, gostava de fazer gracinhas de bicicletas. Alguns de nós sobrevivemos, eu, André, Josequinha. Cidinho, também, viveu muito, entrou para a polícia, morreu em julho do ano passado, num acidente com a viatura que ele dirigia no bairro Belvedere...
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